10 de mar. de 2011

Uma vida nas estrelas

Estreia amanhã, em Curitiba, o longa-metragem paranaense Corpos Celestes, de Marcos Jorge e Fernando Severo

(Gazeta do Povo) Um telescópio é peça fundamental na trama de Corpos Celestes (veja horários das sessões; atenção à data de validade da programação em cinza), que estreia nesta sexta-feira (11) em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. É o instrumento com o qual o menino Francisco descobre a vastidão do universo, e todas as suas infinitas possibilidades. Mas também é através do jogo de lentes do equipamento que o personagem consegue ver muito de perto detalhes de sua própria realidade, que se tornam fontes de dor e desapontamento. Essa ambiguidade, na qual está imerso o protagonista, é o aspecto mais intrigante do filme dos cineastas Marcos Jorge (de Estômago) e Fernando Severo (Paisagem de Meninos).

A primeira parte do longa-metragem é dedicada ao menino Francisco, e essencial para a compreensão do homem que ele será. Curioso e inquieto, Chiquinho encontra em Richard, um piloto e astrônomo norte-americano, refugiado em um casarão no interior rural do Paraná, bem mais do que um amigo. Rick, como o gringo prefere ser chamado, se torna um mentor que vai mudar o curso da existência do garoto.

Filho de um caminhoneiro grosseirão e de uma mãe dedicada, mas sempre imersa nos afazeres domésticos, Francisco é alvo do constante escárnio do irmão mais velho, que enxerga em sua visível sensibilidade indícios de fragilidade, o que não deixa de ser verdade em uma ordem social na qual a rudeza e a força bruta são claros sinais de virilidade e força. Enquanto que a introspecção e a delicadeza não são atributos que costumam ser bem-vindos em homens naquela realidade.

Por conta disso, o encontro de Francisco, interpretado pelo ótimo ator-mirim Rodrigo Cornelsen, e Richard (Antar Rohit) é tão significativo. Apesar de atormentado e depressivo, o americano, veterano da Guerra do Vietnã, legitima tudo aquilo que se passa na mente fervilhante do garoto. O piloto, com seus vastos conhecimentos de astronomia, tem respostas para muitas das perguntas do menino e lhe abre portas que talvez permanecessem cerradas para sempre caso Francisco não o tivesse conhecido.

Mentor
Fazendo lembrar histórias como as do romance brasileiro (e do filme) Meu Pé de Laranja Lima (de José Mauro de Vasconcelos) e do longa-metragem Cinema Paradiso (de Giuseppe Tornatore), nas quais os protagonistas meninos vivem experiências definitivas ao conviver com adultos que servem como substitutos das figuras paternas, Corpos Celestes é um filme tocante. Porque se assume enquanto um drama intimista e emocional desde as primeiras cenas.

Essa emocionalidade, no entanto, não é sentimental demais. Até porque uma série de acontecimentos na vida de Francisco, que envolve perdas significativas e decepções não menos importantes, fazem dele um homem adulto racional e cético, senão cínico. A interpretação contida de Dalton Vigh, que se parece com Rodrigo Cornelsen fisicamente, consegue emprestar verdade ao personagem, cujo mergulho na ciência é uma busca por conhecimento em si, mas também de refúgio para sua dor represada.

Há um contraste visível e intencional entre a primeira e a segunda partes do filme. A infância, ainda que já contaminada por um certo tom de melancolia, é lírica. O trabalho notável da diretora de fotografia Kátia Coelho, premiado no Festival de Gramado, explora as belas paisagens rurais do interior paranaense – boa parte delas na região de Castro – sem cair na tentação dos clichês e dos cartões-postais. Estabelece a geografia dos personagens, acentuada também pelo cuidadoso trabalho de direção de arte de Daniel Marques, dando conta de explicar quem eles são e de onde vieram, e não de construir apenas uma bela moldura. Já a segunda parte explora a vida adulta de Francisco em Curitiba, mais austera, em tons sóbrios e invernais.

Como Francisco constroi ao seu redor uma fortaleza de saber, sustentada por certezas incertas que seus estudos lhe proporcionaram, seu mundo é algo sem graça e previsível. Está limitado a espaços como o gabinete do personagem na Universidade Federal do Paraná e o seu apartamento, que parece uma extensão do trabalho, tantas são as imagens que evocam estrelas, galáxias, planetas e satélites espalhadas pelas paredes. De resto, não é um lar.

O mundo de Francisco, construído sobre a certeza do imenso vazio que é o universo, desmorona quando Diana (Carolina Holanda) entra em cena. Misteriosa, intempestiva e suspeita, ela causa uma espécie de sismo. Ousa invadir uma de suas aulas e, sentada entre seus alunos, questiona a “grande certeza” que parece nortear a existência do professor, que fugiu de seu passado como medida de autoproteção.

Algo fica bastante evidente enquanto se assiste a Corpos Celestes: a inteligência criativa dos dois cineastas, que resgatam a trama de momentos que poderiam muito bem descambar para o melodramático (no mau sentido) e o meramente corriqueiro.

Dos instigantes efeitos especiais – capazes de fazer surgir em torno de Francisco uma profusão de fórmulas e diagramas e de desenhar constelações no céu estrelado recorrente na narrativa – à montagem de Caio Cobra e Mark Robin, trata-se de um filme pensado.

O roteiro de Corpos Celestes, resultado da união de dois projetos de curtas-metragens (leia mais no quadro nesta página), é irregular. Torna-se inventivo quando foca na infância do personagem. A narrativa fica um tanto confusa, talvez como o próprio protagonista, na segunda parte.

A relação de Francisco com Diana, fundamental na trama, não vai tão fundo quanto poderia. A personagem, que representa a força do imponderável, não consegue se impor na trama. Ela é bonita, sensual e ambígua, em seu natural instinto de seduzir todos que a cercam. Mas não parece conter a força cataclísmica capaz de abalar a melancolia profunda de Francisco, o que torna o desfecho de um filme tão singular talvez um pouco frustrante, mas salvo pela solução de não fornecer ao espectador respostas conclusivas, como cabe ao bom cinema.

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