A poluição luminosa não só acaba com a visibilidade do céu noturno, como também acarreta um prejuízo anual de US$ 110 bilhões, causa danos à saúde humana e compromete o meio ambiente
(Galileu) Para os gregos antigos, a visão da Via Láctea no céu noturno representava o leite materno da deusa Hera, esposa de Zeus, derramado enquanto amamentava o bebê Hércules; os bosquímanos de Botsuana interpretavam o mesmo rastro esbranquiçado de gás, poeira e estrelas como sendo a coluna vertebral do céu – era ela que evitava que o firmamento desabasse sobre suas cabeças.
Mas e nós, seres humanos do século XXI, que vivemos em grandes centros urbanos (ou próximos a eles), como vemos a Via Láctea? Simplesmente não vemos: segundo este artigo, para 20% da população mundial, a visão a olho nu da nossa galáxia foi perdida por completo. O motivo é o uso inadequado da luz elétrica, desperdiçada através de um sistema público de iluminação ineficiente.
“Muitas cidades têm luminárias antigas, que acabam juntando poeira e insetos. O ideal é que tenham vidro plano, um bom rendimento, e estejam o mais próximo possível de 90º com o poste”, explica Saulo Gargaglioni, engenheiro energético especializado em poluição luminosa que trabalha no Laboratório Nacional de Astrofísica, em Itajubá (MG). “A luz deve ser jogada apenas para baixo – se tiver um mínimo feixe para cima, é desperdício”, diz. As luminárias redondas são as menos eficientes de todas, pois projetam luz desnecessária para todos os lados. Outdoors, refletores de estádios e letreiros luminosos frequentemente fazem uso inadequado da luz elétrica.
“Estamos vivendo em uma era na qual sabemos mais do que nunca sobre o universo. Ainda assim, poucos de nós conseguem ver mais do que um punhado de estrelas no lugar em que vivem”, diz Scott Kardel, diretor da Associação Internacional do Céu-Escuro (IDA), única organização sem fins lucrativos que luta para preservar o céu noturno e conter o avanço galopante da poluição luminosa.
A IDA estima que US$ 110 bilhões sejam gastos no mundo, anualmente, devido ao desperdício de energia. O quadro também resulta em significativos impactos ambientais: 750 milhões de toneladas de CO2 são despejadas na atmosfera, agravando o efeito estufa.
Os danos da superiluminação
Além do prejuízo econômico e ambiental, a luz elétrica utilizada em demasia e sem planejamento chega a afetar até mesmo a saúde humana. Estudos comprovaram que dormir em um ambiente iluminado suprime a produção de melatonina na glândula pineal, o que pode provocar estresse e câncer, especialmente câncer de mama nas mulheres. Postes mal posicionados nas ruas frequentemente projetam luz no interior de apartamentos e casas.
As plantas e os animais também sofrem com os efeitos da iluminação exagerada dos nossos tempos. A causa primária reside no fato de que, ao longo de milhões de anos, as espécies evoluíram adaptadas ao ciclo natural de dia e noite, claro e escuro. A noite iluminada pode impedir a floração de vegetais, além de desorientar o comportamento de diversos animais, como os filhotes de tartaruga, que necessitam de praias escuras para conseguir achar o caminho até o mar.
Até mesmo a ciência sente os impactos da superiluminação, especialmente a astronomia: segundo este estudo, com um aumento de 25% na poluição luminosa, a perda de potência verificada em um telescópio de 8 metros com custo US$ 85 milhões representa um prejuízo de US$ 20 milhões.
A luta pela noite escura
Para reverter a situação, diversos países já possuem legislações que buscam conter a poluição luminosa. A primeira lei do gênero foi aprovada na República Tcheca, em 2003, e acabou virando uma referência para parâmetros legais no assunto. O texto define poluição luminosa como sendo “todas as formas de iluminação artificial irradiadas para além das áreas destinadas, principalmente se direcionadas acima da linha do horizonte”. Outros países como Estados Unidos, Espanha e Chile também têm leis que regulam o tema.
m abril deste ano, a França aprovou a nível nacional uma lei inédita, focada principalmente no desperdício energético e econômico: o comércio agora deve apagar suas luzes externas durante a madrugada, entre 1h e 7h. De acordo com Scott Kardel, da IDA, a manobra deve evitar, por ano, o lançamento de 250 mil toneladas de CO2 na atmosfera, além de poupar uma quantidade de energia equivalente ao consumo de 750 mil casas convencionais. “Mesmo que combater a poluição luminosa não tenha sido o principal objetivo da lei, ela vai fazer uma grande diferença em reduzir os níveis a cada noite”, afirma o diretor.
Enquanto alguns países começam a levar o assunto mais a sério internamente, a Associação Internacional do Céu-Escuro, que existe desde 1988, promove ações a nível internacional. A de maior destaque é a instituição do programa “Lugares de Céu Escuro”, que reconhece e certifica a nível mundial localidades que possuem o céu noturno livre da poluição luminosa. Criado há doze anos, o projeto trabalha com três modalidades: parques, reservas e comunidades.
“O interesse pelos Lugares de Céu Escuro está crescendo rapidamente, ele traz uma crescente conscientização dos problemas da poluição luminosa, enquanto promove os lugares que as pessoas podem ir para ver o céu noturno notadamente limpo”, diz Scott Kardel. Se algum lugar quiser tentar receber o status de parque, comunidade ou reserva de céu escuro, basta preencher estes formulários e seguir medidas que garantam a qualidade do céu.
No Brasil, as discussões sobre a poluição luminosa ainda não ganharam força. A medida mais efetiva até hoje partiu do Ibama, que aprovou em 1995 uma portaria que regula a iluminação nas praias, para proteger os filhotes de tartarugas marinhas. As demais legislações atuam somente a nível municipal, normalmente para proteger os entornos de observatórios astronômicos. “Paramos no tempo em termos de legislação, não temos nada a nível nacional. Se todas as cidades tivessem um plano diretor de iluminação e poluição, teríamos um ganho enorme, imporíamos limites”, diz Saulo Gargaglioni. “Não somos contra a iluminação, somos a favor da iluminação bem planejada”, explica.
Precisamos de tanta luz?
Para o diretor da IDA, Scott Kardel, o uso que se faz da luz elétrica é claramente exagerado. Ele defende que a iluminação pública não deva ficar acesa a noite toda em lugares em que haja pouca ou nenhuma necessidade para tanto. “Frequentemente, utiliza-se mais iluminação do que realmente é necessário. Se é preciso uma certa quantidade de luz para circular com segurança por uma área, mais luz não a torna mais segura”, diz.
A própria premissa de que a iluminação pública iniba a criminalidade vem sendo questionada. Em um relatório de 1997 ao congresso americano, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos afirma: “Nós podemos ter pouca convicção de que a iluminação previna o crime, particularmente por não sabermos se os criminosos a utilizam em favor próprio. Em resumo, a efetividade da iluminação é desconhecida”.
Por conta da opção pela iluminação geral e irrestrita, estamos abrindo mão de algo que foi declarado pela UNESCO como patrimônio comum e universal da humanidade: o céu estrelado. “A aparência noturna das estrelas tem inspirado a arte, a ciência, a religião e a filosofia ao longo de toda a história humana. Basta olhar para a bandeira do Brasil (e de muitos outros países) e você vai ver que as estrelas são importantes para todos nós”, diz Scott Kardel. “As pessoas não estão apenas desconectadas do céu noturno, a maioria nem sequer sabe o que está perdendo”.
O que estamos perdendo:
O fotógrafo francês Thierry Cohen fez o ensaio Villes Étaintes (Cidades Escurecidas) para alertar a população sobre os efeitos da poluição luminosa no céu noturno das cidades. Sem o excesso de luz elétrica, os céus de São Paulo e do Rio de Janeiro seriam assim:
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