22 de mar. de 2014

O menino das estrelas

(DNoticias - Portugal) O mundo constitui surpresa para eles, a vida abre-se-lhes como um jogo. Um jogo. Um grande jogo de aventura cujas regras começam a decifrar. Os dias da sua infância são leves e alegres. Bolas de sabão sopradas na luz.

Ele sente uma imensa curiosidade por todas as coisas deste mundo, tal é a sua avidez de ver o visível e a paixão que nutre sobretudo pelas geografias do céu. Este fervor pelo céu apoderou-se dele a partir da mais tenra infância; desde logo as estrelas, os astros, os planetas longínquos seduziram o seu olhar. Aliás, gosta de frisar que nasceu no mais escuro de uma noite de Verão, sob um céu sem lua nem nevoeiro. Um céu puro e constelado. Nasceu à hora que culminava Veja, sob o esplendor da Lira. E a Lira, ao que parece, emitiu nessa noite um som muito claro que vibrou até mesmo sob as pálpebras do menino recém-nascido e que, desde então, nunca mais parou de se guindar ao agudo no coração enfeitiçado da criança. O seu coração, o seu olhar, o seu pensamento, o seu desejo - todo o seu ser é requerido por estes alhures tão próximos que em cada noite cintila mesmo por cima dele.
Lá no alto, no infinito.

Lá no alto, o céu, a perder de vista e de maravilhamento. Sempre o céu, de dia e de noite, de alba e de crepúsculo. Vasto o céu, ora rosado, ora azul, ora vermelho-alarangado ou purpurino-violácio, ora ainda cor de ardósia, de metal, de azeviche. Fecundo o céu, com os seus cachos de astros, com as suas flores de lua que se abrem e retraem, com todos os seus sóis em forma de cardos, de enormes sorvas carmesins, de bolas de papilhos esmaecidos. Profundo o céu, com as suas galáxias flutuando em seus confins e que ainda se afastam para além destas estremas até derivarem no ignoto mais escancarado. Ligeiro o céu, e doce, com os seus leites de estrelas, os seus arco-íris. Violento outrossim o céu, com os seus ventos, os seus coriscos, os seus arremessos de meteoros.

É um livro, o céu, um grande livro de imagens que são forças e velocidades. Um livro de páginas vivas que se enrolam, se retorcem, se envolvem, se rasgam e reaparecem, todas as vezes as mesmas e no entanto novas. É um texto sempre em vias de se reescrever, de se continuar e de se ornar de iluminuras. É o seu álbum preferido. Mas há tantas imagens que não viu. O álbum é infinito, e difícil de decifrar. « Quando for grande, proclama, hei-de ser astrónomo. ». E acredita na sua vocação, sem sombra de dúvida. Já se prepara assim para realizar este belo sonho; o menino sabe que terá de trabalhar muito para se tornar num verdadeiro sábio. Cheio de afã e de zelo, devora todos os artigos e obras de astronomia amadora que consegue desencantar.

O seu livro de cabeceira é um atlas celeste, as paredes do seu quarto estão atapetadas de cartazes e de fotografias do céu recortadas de revistas. Até colou uma carta celeste no tecto, por cima da cama, e o seu candeeiro de leitura é um enorme globo celeste de plexigas que difunde uma luz azulada. Todas as noites adormece no recôncavo de um firmamento artificial e tem sonhos que polvilham de sol, que cintilam de estrelas ou reluzem de auroras boreais. Em devaneio, gravita em torno dos planetas, voa no vento solar, atravessa a Via Láctea, corre através da imensidade do céu como um caçador de estrelas para apanhar meteoros.

Quando fez dez anos, recebeu como prenda um magnífico binóculo. Foi para ele, a criança míope enamorada das estrelas, um duplo milagre. Davam-lhe olhos para ver o longe - para ver em grande. Ofereciam-lhe olhos mágicos, capazes de verem o invisível, de contemplarem muito para lá da terra, de se esgueirarem por entre os bastidores do mundo.

O menino tinha o seu reino - o céu. Precisava de um palácio. Inventou-o.

Arranjou um observatório no sótão reduzido a um tamborete, e pontifica assim ao rés do soalho. Confeccionou um pequeno tripé de madeira encimado por uma prancheta, a fim de dispor os cotovelos para firmar o binóculo, e ao lado do assento instalou um caixote revirado sobre o qual arrumou o seu material de estudo: um planisfério, um mapa da região, um calendário, um despertador, papel milimétrico, dois cadernos, um estojo com lápis, canetas, uma régua e uma borracha, um transferidor e um compasso. No decurso das suas sessões de observação, toma notas e regista medições, desenha gráficos, garatuja esboços, escreve às vezes as sua impressões. No caderno de capa branca, lança a esmo as notas e os esboços; no caderno de capa azul, redige com aplicação. Ao pegar no caderno branco, sente-se um aprendiz de astrónomo; por outro lado, o caderno azul permite-lhe expandir o seu lirismo astrólatra. Mas o menino das estrelas sonha dilatar o seu reino. O desejo dele está agora inteiramente dirigido para os telescópios. No dia em que possuir um, será deveras um rei. Mesmo assim, o seu material enriqueceu-se apreciavelmente; ao fazer doze anos, recebeu uma máquina fotográfica. Porfia agora em obter imagens das estrelas, e sobretudo da Lua. Uma vez mais, os seus olhos conheceram um milagre; o seu olhar faz-se agora acompanhar de uma memória que perdura, tangível. Uma memória a preto e branco, recortada em pequenos rectângulos de papel de lustro, e que cresce obstinadamente de mês em mês.

O menino que ao longo do dia padece de uma visão fraca, revela-se dotado de uma visão fabulosa nas noites de vigília que é autorizado a passar no seu palácio-observatório. Goza de um olhar de alto voo, preciso e atento, de um olhar que, além do mais, grava sinais e dá assim testemunho dos seu pacientes deslumbramentos. A Gata Borralheira passava o dia vestida de andrajos e calçando tamancos, mas rodopiava à noite em finos sapatos de verniz, envergando vestidos resplandecentes. O menino sente-se um bocadinho irmão da Gata Borralheira; as suas noites de baile desenrolam-se no sótão celeste; dança com a Lua e as estrelas, paramentando de um olhar soberano. Durante estas poucas horas, esquece a miopia diurna, mune-se de olhos de glória.

Também gostava que a mãe lhe contasse histórias; contos tirados da mitologia greco-romana. Nestes contos, reencontrava nomes que lhe eram familiares. Júpiter, Urano, Mercúrio e Pégaso, Neptuno, Saturno e Cassiopeia, Titã, Andrómeda e Vénus. Os amores e os combates dos deuses aureolavam das suas lendas os astros e os planetas, e avivavam ainda mais o mistério e a beleza das grandes tribos celestes. As personagens que o seduziram mais foram, e ainda são, o ardente Ícaro que voou direito ao Sol como uma ave ébria de espaço e de luz, e que morreu da loucura do seu amor, bem como Selene, a bela deusa Lua com uma tez de brancura irradiante e um luminoso olhar de prata.

O menino é tido como uma criança bizarra, os colegas zombam sem parar. Mas ele não se zanga, apenas se sente muito pouco à vontade no meio de todos estes grande adolescentes, alguns dos quais já têm aspecto de homens; sucede-lhe sobretudo aborrecer-se durante as aulas que, em sua opinião, carecem de vivacidade e amplitude. Faz lembrar um pouco aqueles pequenos camponeses das lendas que sonham tornar-se cavaleiros, partir à conquista de terras desconhecidas, lançar-se à aventura através da imensidão do mundo.

Gosta de romances de Cavalaria, admira Perceval, Lançarote do Lago e o seu filho, o mui puro Galaaz.

O menino quer tornar-se cavaleiro - cavaleiro das estrelas. O seu Graal esconde-se lá muito no alto, no fundo do céu, no mais fundo do céu, no outro cabo do tempo. O seu Santo Graal tem um nome esquisito; chama-se Big Bang.

Tanto pior, porém, se ainda não encontrou bravos companheiros para o acompanharem na sua demanda, nem sequer autênticos amos. Ao menos encontrou a sua Dama. Uma Dama à medida do cavaleiro balbuciante e desajeitado que ele é. Uma linda Dama em miniatura, tão jovial quanto afectuosa. É a rapariguinha que está ali a puxá-lo pela manga.

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