22 de set. de 2014

No tempo das crianças

(Marcelo Gleiser - Folha) Quem não tem uma memória de infância olhando para as estrelas no céu, deitado num gramado na casa de um amigo, ou do avô? E se não for bem assim, certamente você já se perguntou sobre essa imensidão toda, sobre o que existe além do nosso mundo, se aquelas estrelas todas são como o nosso Sol ou por que brilham com tanta intensidade, a cada noite, e se existem planetas girando em torno delas, e se nesses planetas existe também vida, como aqui.

Se não forem as estrelas ou os ETs, talvez sejam os insetos no jardim, a diversidade que vemos nos besouros, nas abelhas e marimbondos, nas borboletas, nos passarinhos, nas árvores, nas flores.

Faço essa listinha da natureza porque nós, adultos que lemos jornal no papel ou on-line, esquecemos disso tudo, deixamos essas curiosidades pra lá, essas "coisas de criança", nessa vida tão corrida e atribulada. E nesse afoito todo de chegar onde nem sabemos que estamos indo, deixamos de olhar para o mundo e nos tornamos sisudos e impacientes.

Ai da criança que vem fazer uma pergunta sobre a cor do céu ou sobre o que é uma nuvem ou por que um copo com água gelada parece suar ou do que o cérebro é feito. Imagine, com tantos problemas no mundo, quem vai ficar pensando nessas coisas? Olha a crise, os políticos, as guerras... Isso sim é coisa pra adulto se ocupar, essas tragédias que eles mesmos criam, os insultos ao próximo, ao planeta, aos besouros que não têm nada a ver com isso.

Volta e meia me pergunto se o problema não está nesse nosso esquecimento, nesse abandono da curiosidade que as crianças têm. Ao nos desligar do mundo natural, deixamos pra trás uma parte de quem somos, a parte que nos remete às nossas origens, aos vários passos da evolução da vida, das bactérias aos dinossauros aos primatas ao Homo sapiens. Quando nos esquecemos das nossas origens, da nossa ligação com a cadeia da vida, fica fácil se achar superior, se desligar do elo que nos leva aos primórdios da nossa história. Ao deixar de olhar para a natureza ficamos órfãos, perdemos o senso de gratidão que deveríamos ter por estarmos aqui. O mundo passa a ser algo separado e distante, e nos perdemos na confusão do nosso próprio barulho.

Para quem tem filhos ou sobrinhos ou netos ainda pequenos, a solução é fácil: basta se permitir entrar no tempo deles, vivenciar o mundo do jeito deles, resgatar aquela parte sua que ficou esquecida por tanto tempo, feito um brinquedo jogado no fundo dum baú.

Quando uma criança olha para o mundo ela o abraça por inteiro, olhos brilhando, antevendo os prazeres da descoberta. Quando um adulto olha para o mundo (se é que olha), pensa em como pode se avantajar dele, o que pode usar para "melhorar" sua posição.

Por que não dedicar algumas horas neste domingo ou no próximo a esse olhar de criança, renovando sua relação com a natureza? Nem precisa ser algo de tão especial; uma pracinha já tem todo um universo, escondido entre as árvores, os brinquedos, a areia, as pedras, as formigas e os tico-ticos, o céu e o sol. Essencial: deixe o celular no carro ou o experimento falha. Para entrar no tempo das crianças, precisamos nos desligar do nosso. Difícil, sem dúvida. Mas vale a pena.

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