12 de set. de 2014

Uma proposta sobre ciência e espiritualidade

(Marcelo Gleiser - Folha) Foi o poeta romano Lucrécio, escrevendo em torno de 50 a. C., que famosamente deu voz à ciência como forma de emancipação pessoal (de liberação de superstições que só fazem despertar o medo e a escravidão do

intelecto humano): nem mesmo o brilho do Sol, a radiação que sustenta o dia, pode dispersar o terror que reside na mente das pessoas. Apenas a compreensão das várias manifestações naturais e de seus mecanismos internos tem o poder de derrotar esse medo.

Já 400 anos antes, a maior influência intelectual de Lucrécio, o filósofo Demócrito, escrevia que a compreensão da estrutura racional do mundo era o único caminho para a felicidade, para o encontro com a graça. Demócrito era conhecido como o "Filósofo Sorridente"; seu sorriso, aqui, representando a graça que atribuímos aos santos e aos iluminados. Será que a razão pode levar à transcendência?

Para a maioria das pessoas, a proposta é impossível; razão é o oposto de graça ou de transcendência, visto que seu uso baseia-se na aderência à regras rígidas e a um ceticismo inabalável. Como que o pensamento analítico pode ter essa maleabilidade, esse impacto emocional e, mais ainda, espiritual?

Primeiro, precisamos eliminar a relação entre a espiritualidade e o espírito enquanto manifestação sobrenatural. O ponto de partida aqui é que existe apenas a matéria. Em toda a sua incrível complexidade, de elétrons à proteínas à borboletas à estrelas, a matéria mantem um vínculo apenas com as forças físicas que agem sobre os seus constituintes.

Não há dúvida de que compreendemos muito dessas manifestações, e é a isso que se refere Lucrécio quando escreveu sobre "a compreensão das várias manifestações naturais e de seus mecanismos internos". Este é o objetivo central das ciências físicas, a identificação dessas manifestações naturais e de seus mecanismos internos.

Porém, não há dúvida, também, de que pouco sabemos do mundo, de que estamos cercados por questões de uma complexidade que nem temos como aferir. "A Ilha do Conhecimento", conforme argumentei recentemente, está cercada por um "Oceano do Desconhecido".

Mas quando falamos do mundo, desconhecido não significa divino, nem tampouco sobrenatural. Desconhecido significa que temos um desafio pela frente, que só pode ser encarado se nos dedicarmos ao seu estudo. E como se dá isso?

Através dos métodos racionais da ciência, que implicam numa devoção intelectual e espiritual, como Einstein havia já percebido. Espiritualidade é uma ligação com algo maior do que nós, que nos seduz de forma incontrolável, que cria uma urgência em querer saber, em querer penetrar sempre mais profundamente nos mistérios que nos cercam.

Essa espiritualidade natural, como eu a chamo, não é uma forma de misticismo. Misticismo pressupõe que o conhecimento que é inacessível ao intelecto possa ser obtido através da contemplação, ou de uma união com o divino.

A ciência, ao menos para mim, começa com uma ligação espiritual com a natureza, usando o intelecto como ponte entre essa ligação e a busca pelo conhecimento. Unindo a atração espiritual pelo desconhecido e o poder do intelecto, a ciência manifesta de forma única a imersão do homem na realidade que o cerca.

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