"Tenho defendido que o Acordo da Lua é fruto de rica experiência, que não pode ser desprezada e deve ser o ponto de partida das novas negociações"
(José Monserrat Filho - JC) "A função primária da lei é a de (...) corrigir a árvore torta, não a de deixá-la crescer selvagemente." Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, RJ; Campus, 1992, p. 56.
Um dos problemas contemporâneos do direito internacional em geral e do direito espacial em particular é o excesso de uso do soft law, que muitos chamam de "direito macio" ou "mole", pois não cria obrigações para seus participantes nem os chama à responsabilidade. São resoluções e instrumentos pseudolegais, de caráter meramente recomendativo.
Podem apontar tendências e demandas, alertar para a necessidade de ordenar melhor certas áreas e atividades, dar origem a costumes, se forem sistematicamente respeitados. O soft law não é um anátema. Pode, sim, desempenhar papel positivo. Por outro lado, pode também ser um artifício ardiloso empregado por potências decididas a impedir a competente regulação de campos e temas em que elas preferem atuar com plena liberdade de ação, sem ter as mãos atadas por qualquer limitação ou constrangimento legalmente obrigatório.
O segundo aspecto é o que mais chama atenção quando se trata de fixar um marco jurídico para questões complexas e de alta relevância estratégica para a comunidade internacional de países e suas organizações. É justamente aí que se pode medir a capacidade normativa do direito internacional, tema de suma atualidade por tudo a que temos assistido nas relações internacionais dos últimos 20 anos, pelo menos.
Num ramo específico do direito internacional, examinei o assunto, junto com meu colega Álvaro Fabrício dos Santos, no texto "Há futuro para o direito espacial além do soft law?", que expus no Colóquio sobre o Direito das Atividades Espaciais promovido pelo Instituto Internacional de Direito Espacial, em Praga, na República Tcheca, em outubro de 2010.
Há mais de 30 anos o direito espacial se nutre apenas de soft law. É uma dieta rala e insuficiente para a intensificação das atividades espaciais registrada em todo este período. Com bem menos problemas e desafios nos anos 60 e 70, o direito espacial foi criado à velocidade cósmica. Em cerca de 20 anos, mereceu cinco acordos vinculantes: o Tratado do Espaço, o código maior das atividades espaciais, de 1967 (10 anos após o lançamento do Sputnik I, que inaugurou a Era Espacial em 4 de outubro de 1957); o Acordo de Salvamento e Restituição de Astronautas, de 1968; a Convenção de Responsabilidade por Danos causados por Objetos Espaciais, de 1972; a Convenção de Registro de Objetos lançados ao Espaço, de 1975; e o Acordo da Lua, de 1979.
Desde então, nunca mais se conseguiu consenso para adotar um tratado que fixasse compromissos compulsórios. O máximo alcançado são resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas, que não têm força legal, como, por exemplo, a dos Princípios sobre Sensoriamento Remoto (Observação da Terra por satélite), aprovada em 1986.
Em quase um quarto de século, essa atividade passou por extraordinário avanço tecnológico e tornou-se essencial para a vida cotidiana na Terra, no gerenciamento de recursos naturais, no planejamento territorial, na previsão do tempo e estudos climáticos, nos sistemas de alerta e mitigação dos desastres naturais, sem falar nos casos de espionagem e invasão de privacidade permitidas pelas imagens de satélites de alta resolução. Apesar disso, o tema está congelado e bloqueado para qualquer tentativa de se legislar sobre ele.
Um grupo de potências liderado pelos Estados Unidos se opõe sistematicamente à criação de novos tratados e, mais que isso, à simples discussão nos fóruns das Nações Unidas sobre a viabilidade e necessidade de tais instrumentos. É um silêncio imposto mediante o uso abusivo da regra do consenso - basta o "não" de um ou alguns países para impedir a prevalência da vontade da maioria, ainda que se trate apenas de promover debates e não de chegar a decisões finais. Um shut up no mínimo constrangedor e, no máximo, irresponsável. Não raro, nem o soft law é tolerado.
É o caso das garantias de sustentabilidade das atividades espaciais a longo prazo. É preciso muito mais segurança e seguridade. Segurança no sentido técnico e operacional; e seguridade como proteção dos satélites e estações espaciais contra, de um lado, os dejetos espaciais (lixo), e, de outro, as armas - que alguns países pretendem colocar em órbita da Terra - capazes de provocar conflitos de consequências imprevisíveis.
Em 2009, a Assembleia das Nações Unidas aprovou um conjunto de diretrizes para buscar reduzir as ameaças do lixo espacial, mas - hélas! - de cumprimento apenas voluntário. Não se criou nenhuma obrigação, por mínima que fosse, para os países, muito embora o aumento vertiginoso do monturo espacial - sobretudo nas órbitas mais úteis e, portanto, mais utilizadas - aconselhe medidas mais determinadas e eficazes.
Quanto aos planos de instalação de armas no espaço exterior - convertendo-o, ao lado da terra, do mar e do espaço aéreo, em novo teatro de guerras, algo que ele até hoje nunca foi, exceto na série "guerra nas estrelas" na televisão e em outros filmes de ficção dita "científica" - nenhum acordo logrou ainda ser negociado a respeito, apesar, por exemplo, da proposta construtiva apresentada, em 2007, pela China e Rússia à Conferência de Desarmamento das Nações Unidas. O debate do tema sofre permanente obstrução dos Estados Unidos. Em 2008, a União Europeia propôs um "Código de Conduta" voluntário (soft law) para resolver o impasse. Mas até agora ele não parece ter a menor chance de êxito.
Chego por fim onde queria: como ordenar a exploração dos recursos naturais da Lua? Essa exploração talvez comece nos próximos 20-30 anos, pois já está na agenda de algumas potências e de empresas multinacionais. O Acordo da Lua, aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979, entrou em vigor em 1984, mas até hoje só foi assinado por quatro e ratificado por apenas 13 países, entre os quais não há nenhuma potência espacial. Por isso, não é considerado pelas grandes potências espaciais como a base jurídica apropriada para o chamado retorno do homem à Lua, desta vez para ficar, fixar assentamentos e aproveitar seus recursos e riquezas. Se assim é, há que negociar novo tratado. Tenho defendido que o Acordo da Lua é fruto de rica experiência, que não pode ser desprezada e deve ser o ponto de partida das novas negociações.
Já disse e reitero ser de todo conveniente que o Brasil assine e ratifique o Acordo da Lua, para prestigiá-lo no papel de inspirador de uma solução tão ampla quanto a que lhe deu origem ao longo de dez anos de debates nos fóruns das Nações Unidas.
Mas, hoje por hoje, cabe firmar desde já, ante as atuais inclinações do direito internacional, a ideia de que o soft law não é o melhor caminho para regular a exploração da Lua ou de qualquer outro corpo celeste. A matéria, multifacética e complexa, abrange questões e interesses importantes demais - com graves implicações ambientais na própria Lua e na desigualdade entre os países aqui da Terra - para ser tratado por meio de instrumento não obrigatório e, portanto, deixado ao arbítrio de cada país e do jogo irracional de mercado.
Registro por relevante que essa visão tem o apoio de Fabio Tronchetti, autor do livro "The exploration of natural resources of the Moon and other celestial bodies - A proposal for a legal regime" (A exploração dos recursos naturais da Lua de outros corpos celestes - Proposta para um regime jurídico), publicado em 2009 pela Editora Martinus Nijhoff, da Holanda, que veio preencher uma lacuna na literatura sobre o assunto.
Fabio Tronchetti doutorou-se com esse trabalho, em 2008, no Instituto de Direito Aeronáutico e Espacial da Faculdade de Direito da Universidade de Leiden, na Holanda, e hoje é professor associado do Instituto Tecnológico de Harbin, na China.
Ele afirma, na p. 289 de seu livro, que "o regime jurídico para regular a exploração dos recursos naturais da Lua e outros corpos celestes deve tomar a forma de um acordo internacional entre os estados". A seu ver, "embora muitos estados que realizam atividades espaciais, como os Estados Unidos, declarem não se interessar em participar das negociações de um novo tratado espacial, a criação de novo instrumento jurídico com normas sobre a exploração de recursos extraterritoriais representa a solução mais viável para assegurar sua execução e obrigar os estados a respeitá-lo ao operarem no espaço".
Sua conclusão não poderia ser outra: "É de esperar que os estados compreendam bem não apenas a importância de explorar os recursos naturais da Lua e de outros corpos celestes, mas também de fazê-lo em conformidade com normas jurídicas específicas".
Evidentemente, será imperioso discutir, elaborar, aprovar e aplicar normas obrigatórias justas e responsáveis, sob múltiplos pontos de vista, com a participação de toda a comunidade internacional, inclusive da maioria dos países que hoje não detêm meios financeiros e tecnológicos para explorar os recursos extraterrestres.
Mas esse já é outro problema, que terá de ser enfrentado com o mesmo empenho com que hoje se clama por um direito que atue para valer.
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