(Diário do Grande ABC) Em dezembro do ano passado, o paciente mais antigo do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, Paulo Machado, 43 anos, revelou em entrevista à Dia-a-Dia Revista que gostaria de conhecer Marcos Pontes, o primeiro astronauta brasileiro. A escolha não foi por acaso. Vítima de um surto de poliomielite na década de 1960, Paulo foi internado na Unidade de Terapia Semi-Intensiva quando ainda era bebê e nunca mais saiu de lá. Uma de suas lembranças mais marcantes remete a 1969, quando, aos 2 anos, viu o hospital parar para assistir à chegada de Neil Armstrong à Lua. Começava ali o fascínio por um mundo bem diferente do seu, onde as pessoas flutuam, não sentem o peso do corpo e nada parece impossível.
Na cama em que vive ao lado de uma estante repleta de DVDs da série Guerra nas Estrelas e de um pôster que pintou com a figura de um foguete prestes a ser lançado no espaço, a realidade de Paulo é outra: paraplégico, ele depende de um respirador artificial para continuar vivo e de todo um aparato médico para dar uma simples volta na rua. As dificuldades de sua companheira de quarto, Eliana Zagui, 36, são ainda mais complexas: sem movimentos nas pernas e nos braços, ela recorre à boca para escrever, pintar quadros e expressar o que sente.
Talvez por isso, ambos tenham manifestado o desejo de conhecer o astronauta, que em 2006 realizou a primeira missão espacial tripulada do Brasil a bordo do foguete Soyuz TMA-8, lançado no Cazaquistão. "Queria estar na pele dele (Marcos Pontes). Se o conhecesse, ia enchê-lo de perguntas", comentou Paulo na ocasião, inspirado não só nas lembranças que tem de Armstrong como na vontade de desafiar a gravidade que o mantém atrelado a uma cama de hospital enquanto o pensamento voa longe.
Dia 6, a Dia-a-Dia Revista pôde finalmente promover o encontro. Durante duas horas, Marcos Pontes respondeu perguntas, distribuiu autógrafos, comentou o vídeo que Paulo baixou na internet com detalhes do cotidiano dentro de uma nave e entregou exemplares do seu primeiro livro - É possível! Como transformar seus Sonhos em Realidade (372 páginas, R$ 59,90) -, lançado dia 10 em São Paulo.
Não demorou muito para perceber que, embora aparentemente controversa, a realidade de um astronauta traz muita coisa em comum com a de quem vive num leito de hospital. "O peso sobre os ossos faz com que as células se renovem o tempo todo. No espaço, isso não ocorre, porque o corpo se acostuma com a gravidade zero e passa a economizar células ósseas, fazendo com que os astronautas apresentem maior tendência à osteoporose. Não sou médico, mas imagino que quem passa o tempo todo deitado na cama também deve apresentar essa variação de densidade óssea. Deve ser um efeito semelhante", observou Pontes, que minutos depois teve sua teoria confirmada pelo diretor executivo substituto do instituto, Sérgio Okane.
As semelhanças não param por aí. Tanto astronautas quanto acamados apresentam perda de tonicidade muscular - "Tínhamos de fazer bastante exercício com as pernas para compensar a falta de gravidade" -, câimbras, aumento de pressão arterial e tontura ao se levantar, entre outros desconfortos.
Também é praxe reclamar da comida e questionar a própria existência: "Quando se olha para a Terra, além de pensar no quanto ela é bonita, você reflete sobre o sentido da vida, no que está fazendo aqui".
Nessa troca de experiências, Pontes revelou peculiaridades de um universo que pouca gente conhece. Afinal, não é todo mundo que tem a oportunidade de ver o planeta-água de longe, contemplar o pôr do sol 16 vezes por dia - embora não possa olhar diretamente para o astro-rei - e que adoraria integrar a missão que levará astronautas a Marte mesmo sabendo que não haverá passagem de volta.
Em meio a tantas curiosidades, o tempo da visita voou como um foguete, dando origem a uma entrevista enriquecedora, conduzida mais por Paulo e Eliana do que pela reportagem da Dia-a-Dia Revista. São deles as perguntas a seguir.
PAULO MACHADO - Lembro nitidamente do dia em que abri os olhos, estava escuro, e havia uma TV transmitindo a chegada do homem à Lua. Sei que você não foi à Lua, mas como é a sensação de ver a Terra de longe?
MARCOS PONTES - Quando se olha para a Terra, além de pensar no quanto ela é bonita, você reflete sobre o sentido da vida, sobre o que está fazendo aqui.
PAULO - A tecnologia tem avançado muito rápido nos últimos anos. Quais são os próximos passos na área espacial?
PONTES - Não há previsão de retorno à Lua, mas uma missão será enviada a Marte. O Obama (Barak Obama, presidente dos Estados Unidos) vai aumentar o orçamento para a Nasa (agência espacial norte-americana). Os equipamentos e serviços ficarão a cargo de empresas de fora, mas ela continua firme.
PAULO - Houve um acidente no Brasil anos atrás. Há possibilidade de se ter uma base tecnológica no País?
PONTES - Sim. A gente tem a AEB (Agência Espacial Brasileira), o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o IAE (Instituto de Areronáutica e Espaço) em São José dos Campos e centros de lançamento em Natal (RN) e em Alcântara (MA). O ITA (Instituto de Tecnologia Aeroespacial) já tem uma turma de dez engenheiros espaciais. Há como produzir e lançar satélites e foguetes no Brasil. Mas a minha função é ficar em Houston (Estados Unidos) à disposição para voos espaciais. Em São Carlos, vamos abrir um curso para formar 40 engenheiros aeroespaciais por ano.
PAULO - Soube do caso de dois astronautas que não puderam ser trazidos de volta. Eles passaram seis meses no espaço e um deles ficou com as pernas quebradas quando foi resgatado. O espaço é tão prejudicial assim para nós?
PONTES - Não sou médico, mas sei que o corpo se acostuma com a gravidade zero. Normalmente, o peso do corpo sobre os ossos obriga as células ósseas a se renovarem o tempo todo. Já no espaço, a falta de gravidade faz com que o organismo passe a economizar células ósseas e, com isso, ele (astronauta) pode ter osteoporose. Imagino que você, por passar o tempo todo deitado na cama, também tenha variação de densidade óssea. Deve ocorrer um efeito semelhante. Há estudos sobre isso feitos com a gente lá (no espaço). E não adianta tomar cálcio porque, como o corpo não sente necessidade de desviá-lo para os ossos, ele acaba indo para o rim e formando pedra.
PAULO - E os músculos?
PONTES - Há perda de tonicidade muscular. É a mesma coisa que acontece quando a gente quebra o braço: por falta de uso, ele afina. Na Soyuz, tínhamos que fazer bastante exercício com as pernas para compensar. Também não podíamos ficar muito tempo apoiados num mesmo pé, para evitar as câimbras. Outro fato curioso é que a distribuição dos líquidos no corpo fica alterada. Por isso, se você levantar rápido, vai ficar tonto e cair. Tem que fazer tudo devagar.
PAULO - A visão muda?
PONTES - Aumenta a pressão no olho. No ouvido, o barulho da estação é tão alto que atrapalha. Mas em geral a impressão é de que o sangue bombeia com mais pressão na parte de cima do corpo - parece que o coração está no pescoço - e com pouca pressão nas pernas. Nos primeiros dias, dá muita coriza, dor de cabeça, sensação de inchaço na cabeça e pés gelados. Leva uns três ou quatro dias para o corpo regularizar.
PAULO - Você sente todas essas mudanças quando volta para a Terra?
PONTES - A fase mais crítica é o primeiro terço da viagem. A nave queima ao contrário e se divide em três. A cápsula vira, vibra, e o resto se desintegra. Aí você começa a ver restos de espaçonave derretidos passando do seu lado. Não é nada agradável... Depois, tem de fazer uma curvatura que pode chegar a 11G, o que significa que o seu corpo pode pesar até 11 vezes mais. Por fim, abre um paraquedas. A 5.000 metros, a cápsula despressuriza e a roupa agarra ao corpo. Depois, cai com o paraquedas e dá uma pancada no chão.
PAULO - O traje só serve para fornecer oxigênio?
PONTES - Não. Também dá proteção contra fogo e nos casos de despressurização. Outros são ainda mais completos: têm água, energia elétrica, rádio, sistema de locomoção e várias camadas para proteger contra a colisão de micrometeoros. Até regulam a temperatura do corpo.
ELIANA ZAGUI - A caneta do astronauta funciona lá?
PONTES - A gente usa lápis. Deve funcionar, mas não vi nenhuma por lá. Aliás, a memória de curta duração fica muito ruim no espaço. Não sei se pela excitação de estar no espaço ou pelo desgaste de trabalhar 18 horas por dia, o fato é que eu esquecia tudo. Uma vez, deixei um cartão de memória da máquina fotográfica sobre um suporte e esqueci de pegá-lo antes que saísse flutuando. E era superimportante: tinha fotos dos experimentos ali. Aí, tive uma ideia: coloquei outro cartão no mesmo lugar e esperei para ver aonde ele iria com a corrente de vento. Ele foi flutuando até outro recinto e parou no meio do emaranhado de fios de um equipamento. Peguei a lanterna para olhar entre os fios e acabei encontrando o outro cartão.
ELIANA - Qual a foto mais marcante que tirou do espaço?
PONTES - A de um vulcão nos Andes, com lago de várias cores ao lado: verde, azul, amarelo... E outra é da cidade de Natal. Tenho mais de 2.000 fotos mas não é fácil batê-las: a gente fica inclinado 51 graus com Equador e tudo passa muito rápido.
ELIANA - Como é o pôr do sol lá de cima?
PONTES - É lindo! Como damos a volta à Terra em 90 minutos, dá para ver o poente 16 vezes por dia. Também vemos muitos meteoritos entrando na atmosfera - como uma chuva de estrelas cadentes - e tempestades de raios projetados na horizontal. Dormir parece perda de tempo tamanha a excitação. Das seis horas que tinha para descansar, passava umas quatro acordado, tirando fotos. Imagine um arco-íris só que com cores diferentes. O horizonte fica preto, vermelho, laranja, amarelo, branco... De repente, aparece uma luzinha: é o Sol que desponta no meio e você não pode olhar para ele porque não tem proteção para a vista. Você tem que olhar sempre pra Terra.
ELIANA - O que o astronauta come?
PONTES - Enlatados.
ELIANA - Como é o sabor?
PONTES - Zero. Também tem comida desidratada, que vem em saquinhos, e a gente hidrata com água reutilizada. Até a nossa urina é reaproveitada lá.
ELIANA - E as fezes?
PONTES - Isso não. Os dejetos são desintegrados no caminho para a Terra.
PAULO - Vi que estão tentando mandar astronautas para Marte. E não tem como voltar. Penso que deve dar uma saudade deixar a Terra...
PONTES - É, os primeiros vão sem passagem de volta, para montar a base. Mesmo assim, gostaria de ir. Tenho dois filhos: um de 24 anos, que é antropólogo, e uma de 20, que faz Medicina na Califórnia. Mas eles sempre me apoiaram.
ELIANA - Não dá medo?
PONTES - Dá. Mas nessas horas a missão a cumprir fala mais alto. Você é treinado a operar primeiro e pensar ou chorar depois. E até isso acontecer (o homem ir a Marte) eu já vou estar bem velhinho. Seria uma forma de encerrar a vida com chave de ouro. Até porque sempre tive a expectativa de ver como é lá. Fica sempre a curiosidade de que possa haver vida em outro planeta. Já descobriram um com composição bem parecida com a da Terra em um sistema próximo...
ELIANA - Você teve a ideia de escrever o livro lá no espaço?
PONTES - Sim. Queria deixar algo para os meus filhos. Deixar ideias, o que eu já aprendi. A proposta do livro é que a pessoa saia do plano das ideias e parta para a realização. E eu também gosto muito de livros. Não ligo para carros ou outras coisas. Quando o furacão Ike passou perto da minha casa nos Estados Unidos, temi pelos meus livros. O resto o seguro cobre. Mas os livros têm anotações minhas. Não dá para restituir.
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