(Michele Gonçalves e Tatiana Venancio - Com Ciência) Segunda-feira às sete e meia da manhã, o friozinho de inverno na sala de aula do colégio enrijece os dedos dos alunos que copiam a matéria já acumulada no quadro. Pensativa, uma garota transcreve algumas equações de segundo grau, as quais para ela em nada se relacionam com os figurinos que sonha, entre um número e outro copiado no caderno, desenhar em sua futura profissão. Ao seu lado um garoto copia as mesmas equações, animado em conjecturar como elas poderiam representar os acordes que ele toca ao violão. Em cada carteira, a mesma matéria se escreve a partir de tão diferentes mãos e anseios, alguns munidos da clareza no motivo de enfrentar a rigidez da equação, outros completamente atônitos perante o mar de números que esfriam ainda mais a manhã.
Muitas vezes os alunos se perguntam por que estudar determinadas temáticas, posto que não veem nenhuma aplicação direta em seu cotidiano ou naquilo que pretendem fazer no futuro. Em alguns casos, não é ao tema em si que o questionamento dos alunos se refere, mas à maneira como o conhecimento chega até eles, por vezes hermética ou distante. A equação de segundo grau que acompanha aquela manhã gelada na escola, por exemplo, poderia relacionar-se e ser apresentada aos alunos de outras muitas formas, além do quadro negro.
Nessa perspectiva, a utilização de instrumentos de divulgação científica em sala de aula tem se tornado essencial para revelar as possibilidades e aplicações do conhecimento científico, bem como para promover maior compreensão e motivação durante os processos de aprendizagem e tornar possível a construção de outras visões sobre como e porque aprender ciência.
A prática docente da divulgação
Atualmente o ensino de ciências tem se diversificado em suas formas de apresentação, contextualização e problematização de conceitos. Uma dessas formas é a prática da leitura de outros materiais para além dos livros didáticos, como textos retirados de jornais e revistas e até mesmo obras literárias e de ficção científica.
O hábito de ler, se incutido na vida desde a infância, possibilita que haja, quando adulto, maior interesse por leituras diversas, das mais simples como uma revista ou jornal, às mais intrincadas como um texto científico. A leitura, bem como a capacidade de compreensão e visão crítica de textos, notícias e reportagens, são ferramentas importantes tanto para o desenvolvimento da cidadania quanto para a estruturação de uma sociedade mais democrática e participativa.
Nesse contexto, a ciência tem sido apontada como mediadora de aprendizagem significativa e muitas pesquisas mostram esse caminho. Gisnaldo Pinto, doutor em educação pela USP, afirma em sua tese de doutorado “Divulgação científica como literatura e o ensino de ciências”, a importância da divulgação científica como leitura e versa sobre sua utilização como alternativa no ensino, principalmente em caso de falta ou precariedade de materiais didáticos. Para ele, a divulgação é o campo em que a transformação do conhecimento se faz efetivamente presente.
Liliane Gama, mestre em educação pela Unicamp, acredita que a divulgação científica pode contribuir para a formação de melhores leitores, preparando-os para a compreensão dos significados, das limitações e potenciais de ação na sociedade. Em sua dissertação de mestrado “Divulgação científica: leitura em classes do ensino médio”, ela analisou o discurso de estudantes após a leitura de livros de divulgação científica e concluiu que elas foram cruciais para levantar a discussão de tópicos diversificados, para além dos mais tradicionais, auxiliando no aprendizado. Segundo ela, “a leitura dos livros de divulgação científica propiciou a inclusão do cotidiano dos alunos no âmbito da escola, o que ampliou o universo discursivo e a produção de sentidos, contribuindo para a aquisição de novas práticas de leitura”.
Segundo Márcia Borin da Cunha, coordenadora do Núcleo de Ensino de Ciências (Necto) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), a utilização da divulgação em sala de aula traz, mais que uma contribuição conceitual sobre as ciências, a possibilidade de formação do estudante em um contexto sociocultural. Ela comenta que muitos educadores utilizam a divulgação na escola por meio de propostas de alfabetização para os meios, leitura crítica, recepção ativa, as quais, de modo geral, “têm como fundamento a análise das mensagens dos meios de comunicação e das formas pelas quais interpretamos e produzimos representações a partir destas mensagens”.
Cunha explica que a utilização da divulgação da ciência para formação passa pelo entendimento dos processos de transposição de um contexto para o outro, ou seja, da mídia para escola. “Os significados e significações que são produzidos são também diferentes em função do meio e do tipo de material que utilizamos para nos manter informados sobre ciência”, afirma.
A pesquisadora destaca o papel das tecnologias educativas quando relacionadas à divulgação científica. “Elas podem ser um bom recurso para as aulas no sentido de aproximar o mundo da escola ao contexto cotidiano do estudante, auxiliando assim no processo de aprendizagem”. Neste sentido, Cunha destaca a utilização do cinema no ensino, que pode adquirir novas potencialidades quando utilizado como instrumento didático. “Tenho desenvolvido atividades de análises de filmes de ficção científica em que busco, junto aos estudantes, compreender como estes formam suas percepções de ciência e cientista a partir do que o cinema reproduz e representa nas cenas, imagens e diálogos. Outra experiência que estamos desenvolvendo é a utilização da fotografia como forma de observação e coleta de dados da ciência”, explica.
Com relação à abordagem da divulgação científica por um viés mais artístico em cursos de licenciatura, em sua tese de doutorado “O funcionamento de imagens e a produção de sentidos na leitura da relatividade restrita” defendida na Unicamp em 2013, Leandro da Silva analisou o papel exercido por algumas imagens contidas em textos de divulgação sob as interpretações de estudantes de licenciatura. Silva, que atualmente é professor assistente da Unesp de São José do Rio Preto, concluiu, a partir de entrevistas com os alunos e de sua produção textual após a leitura do material, que as imagens motivam a aprendizagem, servindo como ponto de partida para discussões e atuando, juntamente com os textos, como material de apoio nas atividades de ensino.
A divulgação em sala e a formação do cidadão
Antônio Carlos Rodrigues de Amorim, professor associado no Departamento de Educação da Unicamp, comenta que a divulgação científica na educação pode se constituir em mais uma oportunidade para a produção da diferença, pensando as culturas, auxiliando na formação. “O exercício da cidadania pela divulgação daria-se pela possibilidade da avaliação das ciências e das tecnologias, por meio da construção de um conhecimento crítico e sensível sobre essas produções culturais em contextos sociais específicos”, enfatiza o pesquisador.
Amorim salienta ainda que a análise crítica das produções científicas, quer sejam de divulgação científica, quer sejam de outras naturezas, tem acontecido em sala de aula em menor proporção do que os efeitos do poderio midiático e comercial no qual a divulgação científica está também envolta. Nas palavras do pesquisador “fazer a crítica de um material que, além de se associar aos conceitos de verdade, está conectado à circulação cultural de massa e de grande influência na organização das sociedades de consumo e do espetáculo, não tem sido tarefa tão fácil ou corriqueira”. Para ele, a formação de professores poderia incluir a utilização, o debate crítico e a criação inventiva com textos e demais discursividades da divulgação cientifica para que a problematização dela própria se tornasse mais simples de ser aplicada também com os alunos.
A linguagem é mais um ponto chave na utilização da divulgação científica no currículo escolar. Embora possa parecer um tanto impalatável à primeira vista, Amorim destaca que a linguagem formal da ciência é uma das qualidades que possibilitam estudantes entenderem estratégias, pensamentos e relações políticas e de poder que envolvem, condicionam e contextualizam a produção científica. Segundo o pesquisador, “o uso de textos de história da ciência e filosofia da ciência, por exemplo, auxiliam de forma diferenciada e com destacável contribuição à aprendizagem da natureza da ciência”.
Relativamente às narrativas escolhidas, Cunha adverte que existem percepções que são construídas a partir da mídia e dos processos da divulgação da ciência que influenciam diretamente no julgamento da ciência e tecnologia, e isso ocorre também no ensino formal. Para a pesquisadora, a divulgação científica, da forma como tem sido promovida na mídia, imprime a ideia de poder da ciência frente aos problemas da sociedade. “A forma como a maioria dos veículos a divulga tem constituído uma percepção de ciência e tecnologia na qual estas têm a função de promover o bem estar da sociedade, especialmente no que se refere às questões de saúde e beleza (temas amplamente divulgados), e isso tem depositado uma confiança excessiva sobre as possibilidades dos cientistas serem os salvadores do mundo”, diz.
Dificuldades e desafios
Mesmo após o crescimento da divulgação científica na sala de aula como uma ferramenta a mais na busca de melhorias no processo de ensino-aprendizagem, ainda há muitas limitações nessa prática. “Nenhum recurso sozinho vai mudar o mundo, mas o trabalho com alguns bons recursos podem provocar boas experiências”, afirma Maria José de Almeida, professora do programa de pós-graduação da Educação e do programa Multiunidades em ensinos de Ciências e Matemática da Unicamp. Ela, entretanto, adverte: “muito da divulgação só se preocupa em apontar resultados num esquema de espetacularização”.
Por isso, é importante que os educadores se atentem ao tipo de divulgação científica a ser abordada e de que forma querem trabalhar em sala. Cunha acentua a importância da utilização de textos, filmes, programas e documentários nas aulas para discutir criticamente o conteúdo das mensagens veiculadas pela mídia. Mas para tanto, segundo ela, é necessário que os próprios professores de ciência entendam o gênero da divulgação científica, e é nesse sentido que a análise crítica fica prejudicada, pois essa discussão não faz parte de sua formação. “Sem formação, e, especialmente, sem o entendimento do gênero da divulgação científica, não há como essa prática se efetivar na sala de aula; ou se ela ocorrer poderá ser como mera reprodução do que a mídia divulga, ou seja, sem análise crítica”, pontua.
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