28 de out. de 2015

Geoffrey Marcy: casos de assédio sexual levam à queda de famoso caçador de planetas

Segundo uma investigação interna da universidade onde trabalhava, o astrónomo Geoffrey Marcy assediou várias mulheres entre 2001 e 2010. O caso tornou-se público agora, coincidindo com o 20.º aniversário – a 6 de Outubro – da descoberta do primeiro planeta extra-solar.


(Público - Portugal) Na história da descoberta de planetas noutros sistemas solares para lá do nosso, o nome do astrónomo norte-americano Geoffrey Marcy é incontornável: ao fim de 20 anos de ascensão como um dos principais caçadores de planetas, tornando-se uma estrela da ciência, Geoffrey Marcy viu agora o seu nome envolvido num escândalo de assédio sexual de pelo menos quatro antigas alunas suas na Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, o que o obrigou a demitir-se tanto do cargo de professor como de investigador principal de um projecto multimilionário de procura de vida fora da Terra.

As quatro alunas apresentaram queixa formal no ano passado, desencadeando uma investigação confidencial da Universidade da Califórnia em Berkeley ao comportamento de Geoffrey Marcy. Em Junho deste ano, segundo o jornal “The New York Times”, a universidade tinha concluído que o astrónomo se envolveu em comportamentos impróprios, como beijos, apalpadelas, toques e massagens nas alunas, entre 2001 e 2010. Duas das mulheres abandonaram a astronomia.

A universidade decidiu que não despediria o astrónomo e que o advertiria de que não haveria tolerância para novos comportamentos do mesmo género, pelo que se tal voltasse a acontecer seria imediatamente suspenso ou despedido.

Só que o caso veio entretanto a público este mês, quando o “site” BuzzFeed News noticiou a investigação da universidade. A notícia desencadeou uma série de reacções, a começar pela do próprio Geoffrey Marcy, de 61 anos, que publicou na sua página pessoal no “site” da universidade uma carta aberta que enviou para a comunidade astronómica. Ainda que diga discordar de alguns aspectos das queixas apresentadas, “pede desculpa pelos erros que cometeu”.

“Embora não concorde com todas as queixas apresentadas, é claro que o meu comportamento não foi bem acolhido por algumas mulheres. Assumo a responsabilidade total e considero-me completamente responsável pelas minhas acções e pelo impacto que tiveram. Por isso e às mulheres afectadas, as minhas sinceras desculpas”, lê-se. “Espero que esta carta transmita as minhas desculpas e o meu desejo sincero de mudar.”

Mas a ausência de sanções para o comportamento passado de Geoffrey Marcy indignou vários astrónomos, que, ainda segundo o “New York Times”, consideraram que a universidade “se preocupou mais em defender a sua vedeta do que com o sofrimento das vítimas de assédio sexual”. Quase todos os membros actuais e reformados do Departamento de Astronomia da Universidade da Califórnia assinaram uma carta, a 12 de Outubro, a pedir a Marcy para se demitir, refere uma notícia da revista “Nature”.

Alunos já licenciados do departamento também emitiram um comunicado, no qual pediram que o astrónomo deixasse de ter contacto com alunos de licenciatura. “O falhanço da universidade em impor sanções significativas a Geoffrey Marcy – propondo, em vez disso, a vaga ameaça de sanções futuras se esse comportamento continuar – sugere que a administração de Berkeley valoriza mais o prestígio e a atribuição de financiamentos do que o bem-estar de jovens cientistas cuja formação tem a seu cargo”, lê-se nessa declaração, a que se juntou outra emitida por investigadores de pós-doutoramento e ainda uma petição “online” de apoio às mulheres que apresentaram as queixas.

Aliás, um antigo estudante de Geoffrey Marcy, John Asher Johnson, que trabalhou com ele durante 13 anos e actualmente é professor de astronomia na Universidade de Harvard, escreveu agora no seu blogue que o comportamento do astrónomo era conhecido: “As acções impróprias de Geoff em relação às mulheres é um dos segredos mais mal guardados em qualquer reunião sobre exoplanetas ou da Associação Americana de Astronomia. Redes ‘clandestinas’ de mulheres passavam informações sobre Geoff a investigadoras juniores na tentativa de as manter em segurança. Algumas vezes funcionava.” Ao mesmo tempo, John Asher Johnson admitiu que nunca denunciou publicamente Geoffrey Marcy: “Sim, beneficiei bastante das cartas [de recomendação] de Geoff. Mas o seu registo de publicações também mostra que beneficiou da minha produtividade científica. Em 2013, achei que estávamos quites e terminei a minha colaboração de 13 anos. Tenho vergonha de não ter falado antes.”

A Universidade da Califórnia tomou uma posição pública sobre o caso, dizendo em comunicado de 14 de Outubro que “a conduta do professor Geoffrey Marcy, tal como determinou a investigação, foi desprezível e indesculpável”. E, em seguida, justifica a decisão inicial: “Um processo disciplinar de um membro da universidade é longo e incerto. (…) O nosso objectivo era proteger imediatamente as estudantes, evitando a repetição do comportamento descrito no relatório da investigação. Por isso, estabelecemos, por escrito, um conjunto estrito de padrões comportamentais que ultrapassam o que está proibido pelos regulamentos e regras da universidade.”

Geoffrey Marcy não resistiu ao escândalo e demitiu-se da universidade. “Acreditamos que este resultado é totalmente apropriado e aceitámos imediatamente a sua demissão”, considerou a universidade no mesmo comunicado.

Geoffrey Marcy também abandonou o seu cargo de investigador principal do Breakthrough Listen, um projecto anunciado em Julho destinado à procura de sinais de vida extraterrestre e com um financiamento de 100 milhões de dólares (cerca de 88 milhões de euros), para os próximos dez anos, dados pelo multimilionário russo Iuri Milner à Universidade da Califórnia em Berkeley e a outras instituições. E a ligação que ainda mantinha com a Universidade Estadual de São Francisco, onde começou por se tornar professor de astronomia antes de se mudar para Berkeley, também cessou agora, por vontade da instituição, noticiou a revista “Nature”.

A ascensão
O astrónomo tornou-se famoso mundialmente e o seu nome era apontado como um possível vencedor do Prémio Nobel, salientou o “New York Times”. Esta visibilidade iniciou-se pouco depois de os astrónomos suíços Michel Mayor e Didier Queloz, do Observatório de Genebra, terem anunciado, a 6 de Outubro de 1995, que em volta da estrela Pégaso 51, a 50 anos-luz de nós, existia um planeta gasoso gigante. Era o primeiro planeta extra-solar, ou exoplaneta, descoberto. O nosso sistema solar deixava de ser único no Universo. E talvez houvesse por aí outras Terras, talvez até tivessem vida, talvez mesmo vida inteligente.

Uma semana após o anúncio histórico da descoberta do primeiro planeta extra-solar pela dupla suíça, a equipa de Geoffrey Marcy confirmava esse resultado, com observações no Observatório Lick, da Universidade da Califórnia. Oito anos antes, em 1987, Geoffrey Marcy e Paul Butler, então investigador de pós-doutoramento na equipa daquele astrónomo, tinham iniciado juntos a jornada da busca de planetas extra-solares, através do método dito das “velocidades radiais” – o mesmo utilizado pela equipa suíça –, que procura detectar pequenas variações periódicas na velocidade de uma estrela, denunciado dessa forma a existência de um planeta em sua órbita.

Alguns meses depois, em Janeiro de 1996, a equipa de Geoffrey Marcy estava ela própria a anunciar a detecção de dois novos planetas em órbita de duas estrelas distintas – um à volta da Virgem 70 e outro da Ursa Maior 47. “Depois da descoberta de Pégaso 51 toda a gente se perguntou se era uma aberração, se era uma possibilidade num milhão”, dizia na época o astrónomo em comunicado. “A resposta é não. Afinal, os planetas não são assim tão raros”, acrescentava. “Estas novas descobertas são importantes porque criam um novo subcampo da astrofísica – o estudo de sistemas planetários. Podemos agora investigar as características desses planetas, como as suas órbitas e massas.”

Estavam em campo as duas principais equipas de caçadores de planetas, que depois de um período inicial de cooperação, entraram em forte competição, o que conduziu a desentendimentos. No décimo aniversário da descoberta do primeiro planeta extra-solar, as duas equipas já se tinham desentendido e a corrida aos planetas extra-solares, bastante polarizada naqueles tempos, ia com cerca de 100 planetas para a equipa norte-americana e 70 a 80 para a equipa suíça. Por esta altura, Geoffrey Marcy já era uma estrela mediática e as dissensões dentro da sua própria equipa já se faziam sentir: “Butler sentia-se cada vez mais marginalizado à medida que os repórteres se aglomeravam à volta de um eloquente e disponível Marcy”, escrevia o “New York Times” num perfil sobre o astrónomo no ano passado, intitulado “Descobridor de Novos Mundos”. “Os ‘media’ gostam de mim”, disse certa vez, segundo o mesmo artigo.

As tensões cresceram quando Geoffrey Marcy partilhou com Michel Mayor um prémio de um milhão de dólares (cerca de 880 mil euros), como reconhecimento pelo pioneirismo de ambos, atribuído pelo já falecido magnata da indústria cinematográfica de Hong Kong Run Run Shaw, e não disse nada antes à sua equipa. Não tardaria muito a que alguns investigadores da sua equipa a abandonassem, incluindo Paul Butler.

De há dez anos para cá, a polarização inicial entre a equipa de Geoffrey Marcy e a de Michel Mayor e Didier Queloz estilhaçou-se, à medida que entraram em campo muitas outras equipas espalhadas pelo mundo e as descobertas de planetas extra-solares se tornaram corriqueiras, ao ponto de já só serem notícia se algum deles tiver alguma particularidade – como aconteceu em Julho último com o planeta Kepler-452b, a super-Terra que mais se aproxima do nosso planeta, uma vez que se encontra a uma distância da sua estrela que permite a existência de água líquida. A área dos exoplanetas envolve agora milhares de investigadores, desde a sua descoberta até à sua caracterização. E, entretanto, Michel Mayor reformou-se, e Didier Queloz mudou-se para uma universidade no Reino Unido.

O número actual de planetas extra-solares está quase a chegar aos 2000, incluindo desde gigantes gasosos até mundos rochosos semelhantes à Terra, descobertos por métodos indirectos – que detectam ou as variações de velocidade de uma estrela devido à atracção gravítica exercida por um planeta em órbita dela ou, segundo a outra técnica principal designada por método dos trânsitos, que detectam diminuições regulares na luminosidade de uma estrela devido à passagem de um corpo à sua frente. Geoffrey Marcy descobriu muitos deles.

Resta agora saber que caminho seguirá e o que acontecerá aos projectos de investigação em que estava envolvido. Inclui-se aqui o telescópio robotizado Automated Planet Finder, instalado no Observatório Lick para procurar planetas rochosos, e a missão do telescópio Kepler da NASA, lançado no espaço em 2009 e que deixou entretanto de funcionar, mas os dados recolhidos continuam a ser analisados e a dar origem à publicação de descobertas, como a da super-Terra Kepler-452b.

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