18 de set. de 2014
Complexidade irredutível
(Mensageiro Sideral - Folha) Num pequeno planeta azul, orbitando uma estrela anã amarela a milhões de anos-luz daqui, vivia uma pacífica sociedade paleolítica. Bem, tão pacífica quanto pequenos grupos isolados de caçadores-coletores podem ser. No relativo conforto de uma úmida caverna, um clã inteiro – homens, mulheres e crianças – se protegia de um temporal inclemente no meio da noite. Trovejava muito. Bebês choravam ao fundo, enquanto dois homens faziam a guarda na entrada do abrigo.
Em meio à chuva torrencial, os dois jamais esperavam que alguém pudesse vir de encontro a eles. Mas se há uma coisa que a vida no paleolítico ensina é que atenção nunca é demais. Eles espremiam os olhos, enquanto gotas de água carregadas pelo ar insistiam em vir de encontro às pupilas dilatadas pela escuridão. E então eles se surpreenderam ao ver duas silhuetas caminhando pela chuva, contornando o terreno pedregoso com dificuldade, paulatinamente se aproximando.
– Você está vendo isso? – perguntou Dareem.
– Alguém – ou alguma coisa – vem vindo aí! – confirmou Ualaco, seu colega de vigília.
– Quem está aí?
Uma voz distante, se aproximando, respondeu.
– Não se preocupem! Somos amigos! Peregrinos à procura de um abrigo da tempestade!
A dupla de guarda ficou receosa em dar tão facilmente entrada ao refúgio de seu clã, mas diante de tamanha inclemência dos céus, que alternativa? Os vigias recuaram dois passos, dando espaço para que os forasteiros saíssem do temporal, mas sem permitir um acesso irrestrito ao interior da caverna.
– Podem aguardar aqui até a chuva passar. – disse Dareem. – Temos frutas, caso estejam com fome. E tenham algo para dar em troca, é claro.
– Claro. Permita que eu nos apresente. Meu nome é Naberlind e este é meu colega Azneso. Naturalmente temos coisas a lhe oferecer que decerto vão interessá–los. Somos sábios em nossa terra e podemos trocar informações.
Dareem e Ualaco se entreolharam. De fato, havia uma coisa que precisavam desesperadamente saber. Algo que seu clã há tempos tentava produzir, sem sucesso. Ou melhor, com resultados apenas parcialmente satisfatórios. Mas poderiam os forasteiros ajudar? E mais: ainda que pudessem, concordariam, dado o tamanho do pedido?
– Há algo que talvez possam nos ensinar. – replicou Dareem. – Estamos tentando resolver isso há anos. Nós queremos… bem, queremos… estamos buscando aprender como… como fazer fogo.
O fim da frase saiu baixinho, quase como um sussurro, interrompido bruscamente por um par de gargalhadas.
– Hahahaha! Fazer fogo! Hahaha! Ouviu isso, Az? Eles querem aprender a fazer fogo!!! Hahahaha! Pois bem, podemos vos dar a mais importante informação a esse respeito: é impossível fazer fogo.
Ualaco estranhou.
– Impossível? Não, não deve ser! Já fizemos progressos importantes nessa direção! Conseguimos produzir pequenas fagulhas de fogo com pedras escuras que encontramos no fundo desta caverna. Falta-nos gerar um fogo contínuo a partir delas. Mas está claro para nós que é perfeitamente possível.
Naberlind e Azneso ainda mantinham um sorriso no rosto, triunfal.
– Não, você está errado. É impossível. Essa história de fazer fogo é apenas uma teoria. Vocês já deviam ter percebido isso, depois de tantos e tantos anos tentando. É impossível. Uma falácia. E vamos dizer por quê. Az, você explica ou eu?
O colega nem esperou e emendou.
– Complexidade irredutível.
– Quê? – franziu a testa Dareem.
– Complexidade irredutível – retomou Azneso. – Veja só. Vocês são sujeitos observadores, estou certo de que já notaram isso. Existem quatro essências possíveis para tudo que existe. Sopro, água, terra e fogo. Essas são essências básicas. Você não pode transformar uma em outra senão por processos muito complexos, que não podem ser gerados por vias naturais. O fogo possui uma complexidade irredutível. Não é possível pegar outros elementos e combiná–los para produzi-lo. Sem um controle muito além das nossas capacidades, não há como sintetizá-los a partir de partes de terra, sopro e água.
Naberlind regojizava-se com a explicação do colega.
– Fabricá-lo seria algo como… um vendaval espalhar folhas molhadas pela sua caverna e com isso produzir uma de suas pinturas rupestres. Nem em incontáveis dias isso poderia acontecer, certo? – prosseguiu, sem esperar uma resposta.
– Não é maravilhoso? – interrompeu Naberlind. – O mundo foi planejado e construído com quatro elementos irredutíveis, todos muito complexos para ser produzidos por vias naturais, pelos Projetistas. E não há meio de obter fogo que não seja por intervenção deles, os únicos capazes de promover a transmutação de algo inanimado, como a terra, em algo animado, como o fogo. Claro, também não há como fazermos terra com água, ou sopro com terra. Vocês sabem disso, lá no fundo. Afinal, vocês já manipularam o fogo antes. De onde ele vem?
Ualaco pensou por um par de segundos antes de responder.
– Bem, todas as vezes que conseguimos trazer fogo pela caverna, ele estava em galhos de árvores secas, queimando após uma grande luz vir do céu e atingi–las. Por isso sempre saímos para procurar fogo depois que ouvimos o barulho da grande luz.
– Exato! – exultou Naberlind. – Esta é a intervenção dos Projetistas, dando-nos o fogo. Não podemos criá-lo a partir de terra, sopro ou água. Você já viu uma árvore virar fogo espontaneamente, sozinha, do nada?
– Bem, não. Mas já vi o fogo começar em lugares secos e sob muito sol. Sem grande luz. Só o sol.
– Az, só o sol! Ele disse “só o sol”! – Naberlind gesticulava negativamente com a cabeça. – Tsc, tsc, tsc. Meus caros amigos, abracem o verdadeiro conhecimento. Esqueçam essa filosofia materialista, que não levará a nada. O sol é feito de quê? Do mesmo material que a grande luz. Sabe qual? Fogo! E quem cria o fogo, lá em cima, e nos cede gentilmente? Os Projetistas! Não há fogo sem os Projetistas!
– Só eles controlam o sol e a grande luz, podendo assim criar o fogo – complementou Azneso. – Não há meio de o surgimento do fogo ser um fenômeno natural. É uma manifestação evidente dos Projetistas! Complexidade irredutível!
Dareem não sabia o que dizer. Será possível? Aquilo contestava todas as observações feitas. Porém, também era verdade que, ao menos em seu clã, nunca ninguém jamais havia produzido o fogo em caverna. Mas…
– Mas e as faíscas que geramos com pedras? – disse Ualaco, tirando as palavras da boca de seu amigo.
– As faíscas, ora, as faíscas! Elas acendem e apagam numa fração de segundo, pois essa é sua natureza. Mas o fogo não. O fogo se mantém queimando. Ele contraria a segunda lei da termodinâmica! – disse Naberlind.
– A segunda o quê? – perguntou Dareem, exasperado com o linguajar sofisticado dos visitantes. Ele desconfiava que o palavrório complicado escondia ideias simples demais. Poderia o mundo ser tão simples assim? Era fácil demais varrer para o fundo da caverna tudo aquilo que não fosse imediatamente explicável, alegando “complexidade irredutível”. Era um argumento-coringa. Seria este o fim de todas as reflexões a respeito do fogo? A conclusão de que ele era fruto de uma intervenção de ordem superior? Dareem não gostava da ideia, mas seus interlocutores eram incansáveis.
– A natureza de todas as coisas é decair, exceto aquelas elementares, que já estão em seu estágio mais simples – disse Azneso, interrompendo os pensamentos do guarda. – A fagulha é o melhor que podemos chegar de produzir o fogo. Mas ela logo decai em ar, que é seu verdadeiro elemento natural. O fogo se mantém de forma indefinida, enquanto houver madeira. Embora não seja, claro, feito de madeira. Ele contradiz a segunda lei da termodinâmica. A natureza não produz coisas assim. A natureza segue suas leis. Só os Projetistas podem contrariá-las.
– Hmm… – respondeu Ualaco, enquanto olhava para fora e notava que a chuva havia dado uma trégua. E, vejam só, ao longe, uma árvore se incendiava. – Bem, a chuva parou, acredito que vocês possam seguir viagem. Dareem, siga de guarda, eu vou buscar o fogo para trazer para dentro da caverna. Sem experimentos com pedras hoje.
Os forasteiros se despediram e partiram, satisfeitos de terem iluminado mais um grupo de ignorantes nessas terras ermas.
Dareem nunca comprou a versão deles. Mas nem todos em sua tribo eram tão questionadores. E ele já não era mais um menino. Eventualmente, o grande experimento da civilização – a fabricação do fogo – foi interrompido. Por todos os agrupamentos humanos, cristalizou-se a noção de que o fogo era produto de um Projetista inteligente e jamais poderia ser obtido de forma natural por algum arranjo apropriado. O sonho de Naberlind e Azneso, convencer a todos da veracidade de suas proposições, havia se tornado realidade.
Sem compreender o fogo, essa civilização jamais cresceu em grande número. Nem sempre era possível cozinhar os alimentos, e doenças proliferavam por conta disso. Os clãs eram pequenos. Contagens, desnecessárias. Nada de escrita. Ninguém jamais compreenderia o fogo e seu fenômeno químico correspondente, a combustão. Não haveria saltos tecnológicos. Agricultura, cerâmica, metalurgia. Imprensa. Automóveis. Foguetes.
E então um dia, sem aviso (não havia telescópios), nem defesa (não havia naves espaciais), um grande asteroide impactou contra aquele idílico planeta azul. Uma nuvem espessa e cinza recobriu o mundo inteiro, para desespero de seus habitantes. Eles apelaram o quanto puderam para os Projetistas, mas ninguém estava lá para ouvi–los. Incêndios globais tomaram de assalto toda a vida, apagando qualquer resquício de habitabilidade. Em alguns milhões de anos, criaturas microscópicas voltariam a subir a ladeira íngreme da evolução. Mas àquela altura estava encerrado, de forma melancólica, mais um experimento conduzido pela natureza sobre a vida inteligente no Universo.
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